terça-feira, julho 22, 2008

A OBRA D EMARCEL DUCHAMP

Marcel Duchamp é o maior artista plástico e um dos maiores artistas de todo o século XX. Está no nível do autor de “O Processo”, Franz Kafka (1883-1934), nascido em Praga, hoje capital da República Tcheca. Régis Bonvicino

Fonte: IG



O artista plástico Marcel Duchamp Duchamp (1887-1968) nasceu em Blainville-Crevon Seine-Maritime, que se localiza perto de Le Havre, ao norte de Paris, próxima da Bélgica e margeando o Canal da Mancha, o que a torna, como cidade da Haute-Normandie, “quase inglesa”, na linha de Londres e Brighton.

Como informa o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz (1914-1998), “Duchamp ganhou quantias irrisórias com seus quadros – a maioria os presenteou – e viveu sempre modestamente, sobretudo se se pensa nas fortunas que acumula hoje um pintor que mal goza de certa reputação”.

Paz aponta o espanhol Pablo Picasso (1881-1973) e Duchamp como os mais influentes artistas plásticos do século passado: ”O primeiro por suas obras, o segundo por uma obra que é a própria negação da moderna noção de obra”.

Paz fez essa afirmação em 1968, em seu livro “Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza” (no Brasil, pela Editora Perspectiva, 1977). Antes de discutir a obra de Duchamp “como negação da noção moderna de obra”, ofereço ao leitor a precisa definição do mexicano de ready-made – o mais conhecido procedimento artístico de Duchamp – “o ready-made é arma de dois gumes: se se transforma em obra de arte, malogra o gesto de profanação; se preserva a neutralidade, converte o gesto em obra. Nessa armadilha caíram, em sua maioria, os seguidores de Duchamp: não é fácil jogar com facas”.

Hoje, pode-se ter visão diversa da obra desse artista que transcendeu os movimentos dadaísta e surrealista e demais rótulos. Duchamp percebeu, já na primeira década do século passado, que a arte havia perdido seu sentido, enquanto representação figurativa da “realidade” e ou mesmo bidimensional, cubista dessa “realidade”, como a de Picasso – crítica, de certo modo, branda ao mundo contemporâneo; daí dizer-se que ele negava o “sistema da arte”, cultivado pelo pintor malaguenho, em gesto de agressão à burguesia.

À diferença de Picasso, Duchamp “pintava” com a cabeça e não com o olhar. Seu aguçadíssimo espírito crítico e sua inteligência, levaram-no a compreender que a Revolução Industrial (séculos XVIII, XIX e XX), a revolução da máquina e das massas, havia, na verdade, liquidado com qualquer possibilidade de arte, que sobreviveria – a la Picasso – num mercado sofisticado e para poucos – como mercadoria.

Duchamp, que começara cubista, ao contrário de Picasso, que, durante os seus vinte primeiros anos de carreira, foi um realista figurativo, convencional, decidiu trabalhar com o lixo dessa sociedade industrial – que trazia em si a sua própria destruição, como se vê hoje com o aquecimento global.

Não à toa – como assinalei em coluna anterior – Nicholas Stern conceitua o aquecimento global como o maior fracasso de mercado da história do homem, ou seja, o maior fracasso da Revolução Industrial.

O pensador belga-francês Claude Lévi-Strauss afirma que, no ato de consumo, de aquisição de qualquer bem, uma saia ou um carro, ainda persiste – atavicamente – o ato do homem primitivo de apanhar frutos das árvores, ou, em outros termos, o impulso aleatório de acumulação, inclusive, de capital. O ato de furto, de apropriação indébita.

Os ready-made de Duchamp constituem-se, ao mesmo tempo e paradoxalmente, nesse gesto de acumulação primitivo (inocente, no início da humanidade) e em violenta crítica à acumulação do capital, que, além de subjugar o homem, devasta o meio-ambiente e dizima o próprio homem.
Seus primeiros ready-mades foram “Roue de biclyclette” (1913) e “Fonte” (1917). O primeiro transforma uma roda de bicicleta, agora inútil, sem a bicicleta e sem beleza “convencional”, em “arte”: é o objeto inútil representando a si mesmo, nu e cru.

A chave de sua interpretação consiste no resgate dessa inutilidade para a arte, dura crítica em relação à sociedade utilitarista, e aos artistas que, apesar de magníficos como Picasso, seguiram pintando para uma arte que não mais dizia – digamos – nada, além de “reiterar-se” “mercadoria”. O segundo é um urinol de porcelana, no qual se esculpe toda idéia de escárnio , e, sobretudo, de sujeira.

A “Fonte” é assinada com o pseudônimo R. Mutt, que carrega em si também a palavra “mutation” (mutação) e a palavra mudo, de calado. Marcel Duchamp é assunto inesgotável e, também a exposição do MAM, em virtude de sua heróica extensão.

A mostra, no entanto, evidencia que esse Museu não tem infra-estrutura para receber um Duchamp: apesar de seus bilionários patrocinadores, não há informação didática, gratuita, suficiente e de qualidade para o público mais leigo e pobre.
Sinal de que a elite econômica do país se preocupa menos com a arte e mais com autopromoção, por meio justamente da “arte”. Mas, só de o MAM a ter montado já é um feito e tanto! É o “evento” do ano. Talvez, da década.

Ante Duchamp, o inesgotável, e ante tão contundente exposição, opto por assinalar a importância de seu filme “Anémic cinéma”, de 1926, realizado no estúdio do fotógrafo e pintor norte-americano Man Ray (1890-1967), que se traduz numa sucessão de planos fixos de dezenove discos giratórios em movimento; cada disco contém palavras, que, ao cabo, formam um poema, com trocadilhos e aliterações.

O poema é de autoria de Rrose Sélavy, outro pseudônimo de Duchamp – um anagrama de “Eros c’est la vie”: rose e eros. Duchamp, o humanista-cético, ilustrador de poemas do poeta francês Jules Laforgue (1960-1887) reaparece revolucionando igualmente a poesia, incorporando, nela, o cinema falado, a idéia de movimento e labirinto. Há muito do nonsense dos poetas ingleses Edward Lear (1812-1888) e Lewis Carrol (1832-1898) nos textos: “Esquivons les ecchymoses des esquimaux aux mots exquis”.
Esse filme de 1926, insuperável, contém tudo aquilo que se chamou trinta anos depois de “Poesia concreta”, letrista ou visual e que se pretendeu “vanguarda”. Para finalizar, reflito sobre “Bouche-évier” (em forma de pequena medalha de bronze, versão de 1967) ou “Boca-ralo”.

O trabalho é bastante representativo da crítica do autor de “Roue de bicliclette” ao mundo das manufaturas e à profanação – atenção – do homem, que não mais existe nos limites de seu corpo e vaza, sangra, invadido. E, ao mesmo tempo, é erótico-mórbido, ao fazer a analogia entre o ânus e a boca, gravados em medalha – relação que, portanto, revela-se justamente pela medalha em metal, estática, morta. Quando revi “Bouche-évier” não pensei no malogro da arte ou do ready-made como objeto de arte, como Paz corretamente observara, mas no malogro desse homem de hoje, deserotizado e siliconado, seios e lábios artificiais, como “burkas estéticas” – com a “industrialização” de tudo, da boca ao ânus e, sobretudo, do ânimo.

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